Em meio ao líquido que corre nas veias estão dedos-duros de diversas doenças. Batizadas de marcadores, essas moléculas revolucionam a forma de diagnosticar e monitorar problemas. E, agora, prometem ajudar os médicos a rastrear a artrite reumatoide, tumores e até transtornos mentais
Você já ouviu a máxima de que não existe crime perfeito, certo? Pois é, dá para dizer que ela também é válida para aquelas situações em que um atentado é cometido contra o corpo humano. Uma doença sempre deixa pistas, e a missão do bom médico é encontrá-las quanto antes. No caso, os rastros de uma enfermidade se espalham pela circulação. Só que, em vez de dificultar o trabalho do detetive, o sangue é um meio de fácil acesso para colher as pistas, que, no jargão científico, tornaram-se conhecidas como marcadores.
“São substâncias que indicam a presença ou o maior risco de um mal”, define o médico Fernando Kok, consultor de Erros Inatos do Metabolismo do Laboratório Fleury, em São Paulo. “Entre elas, estão o colesterol, que denuncia as chances de problemas cardiovasculares, e o PSA, que aponta doenças na próstata”, exemplifica Carlos Ballarati, presidente da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial.
Agora, na Suécia, pesquisadores da Universidade de Umea desvendaram substâncias que acusariam, ainda em fase muito precoce, a artrite reumatoide, problema que ataca as articulações, causando dores, inchaços e deformidades. Trata-se de moléculas que participam do processo inflamatório instalado com a doença — as citocinas. “Elas têm a função de manter o equilíbrio do sistema de defesa”, explica a imunologista Andréa Carvalho, do Laboratório de Biomarcadores da Fundação Oswaldo Cruz, em Minas Gerais. Um grupo de citocinas, porém, é capaz de exacerbar a inflamação e, se passa a prevalecer, contribui diretamente para a perpetuação da artrite. Os especialistas suecos sugerem que esse descompasso se inicia antes de os sintomas aparecerem. Assim, um teste sanguíneo poderia flagrar as ditas-cujas, antecipando o diagnóstico e o tratamento.
“A questão é que as substâncias inflamatórias nem sempre são muito específicas”, pondera Andréa. Ora, qualquer infecção, por exemplo, pode elevar a quantidade delas na corrente sanguínea. Este, então, é o desafio dos cientistas: buscar marcadores com alta especificidade e sensibilidade. “O ideal é que cada órgão ou doença produzissem o seu. No entanto, as as coisas não funcionam bem assim”, diz Kok. Apesar dos entraves, a corrida por marcadores segue mais intensa do que nunca, especialmente no caso de doenças de difícil diagnóstico, como o Alzheimer. Um estudo da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, encontrou uma espécie de anticorpo que surgiria em resposta ao colapso dos neurônios. Se novos experimentos confirmarem sua conexão com a enfermidade que solapa a memória, um exame poderia ser desenvolvido para caçar a molécula no sangue. É claro que essa solução não ficará pronta da noite para o dia. Chegar ao bom e velho exame de colesterol, por exemplo, exigiu décadas de trabalho. Além disso, nenhuma substância isolada é suficiente para dar uma sentença. “Todo marcador precisa ser contextualizado, ou seja, analisado em conjunto com outros dados clínicos”, lembra Kok.
O problema é que nem todo bandido deixa vestígios muito aparentes na cena do crime. No nosso organismo, acontece algo semelhante: nem sempre é possível surpreender os indícios de uma doença quando ela mal deu as caras. Por isso, com o intuito de denunciar um problema com maior antecedência e calcular seu potencial de agressão, os pesquisadores estão de olho nas digitais genéticas. A ideia é identificar genes que, uma vez fora do padrão, ficam diferentes quando surgem tormentos como um câncer. Não estamos falando daqueles trechos do DNA transmitidos de geração para geração que aumentam o risco da doença. Mas, sim, de unidades do genoma que se alteram quando um tumor está prestes a eclodir — ou acabou de eclodir. Essa tendência despontou na oncologia e, recentemente, pesquisadores europeus anunciaram a descoberta de marcadores genéticos para o câncer de cólon.
“Vários genes ficam alterados na célula tumoral”, diz a patologista Isabela Werneck da Cunha, do Hospital A.C. Camargo, em São Paulo. E as células do tumor, carregando pedaços do seu DNA, também podem cair no sangue, fornecendo evidências de que algo está errado. “Esses testes para rastrear o câncer são sensíveis, só que ainda precisam passar pelo crivo de novos estudos”, opina Isabela.
Marcadores genéticos também são uma das promessas para monitorar distúrbios mentais. Um grupo da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, desvendou genes que se encontram alterados em portadores de transtornos de humor, como a bipolaridade. “Eles nos ajudarão a mensurar a gravidade do quadro e acompanhar a resposta ao tratamento”, explica o líder das pesquisas, Alexander Niculescu. Enquanto aguardamos a nova safra de dedos-duros, vale torcer para que a ciência continue aproveitando o sangue como fonte inesgotável de informações
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